Reportagem na revista SÁBADO – Hipertermia

Sabia que o calor pode ser uma poderosa arma contra o cancro? A hipertermia, usada em conjunto com a quimioterapia e a radioterapia, pode ser a solução quando já não há alternativas

Janeiro de 2016. A mancha vermelha que lhe apareceu por cima da cicatriz, e que agora existe no lugar da sua mama esquerda, denunciava-se a si própria. “Está aqui novamente”, pensou de imediato Maria do Céu Gaspar. Em apenas 15 dias (o tempo que o resultado da biópsia demorou a estar pronto) cresceu: começou com o tamanho de uma moeda de dois euros e foi-se alastrando, como o sarampo, compara a telefonista. Maria do Céu tinha a certeza de que era “o monstrinho” – como se referiu ao cancro na conversa com a SÁBADO. “Só não se sabia se era uma recidiva ou se tinham ficado células tumorais depois da cirurgia [uma mastectomia radical].”

Mas esse nem era o principal problema. O pior é que aquela zona já estava bastante combalida por causa dos tratamentos – o carcinoma invasivo na mama esquerda fora-lhe diagnosticado em Julho de 2014 e, desde então, já tinha feito quimioterapia e radioterapia pré-operação. As radiações diárias, ao longo de um mês, deixaram-lhe a pele do peito preta e assada, como uma queimadura solar – que, por sorte, nunca chegou a abrir ferida. E, recentemente, iniciara quimioterapia oral. Mais: o tratamento de que realmente precisava (mais radioterapia), nas doses necessárias para produzir algum efeito, não era exequível. “Corria o risco de ficar com lesões no coração [por causa do local da recidiva].” O organismo não aguentaria tanta toxicidade.

Maria do Céu Gaspar parecia ter esgotado todas as alternativas, mas correu atrás de uma última hipótese: no IPO de Coimbra, onde estava a ser seguida (vive em Tortosendo, na Covilhã) falaram-lhe de uma terapia inovadora, que combate o cancro através do aumento da temperatura. Partiu para o Porto e dispôs-se a experimentar. O tratamento, até há pouco mais de um ano inédito em Portugal, deu-lhe uma nova oportunidade. A recidiva regrediu e hoje está sem evidências da doença.

A nova arma na luta contra o cancro chama-se hipertermia e consiste na emissão de uma corrente de radiofrequência. O que significa basicamente um aumento homogéneo da temperatura, entre os 41 e os 43 graus, na região ou no órgão que se pretende tratar. Também pode ser dirigida a todo o corpo. Para já disponível apenas no Hospital CUF Porto, não funciona como um tratamento em si, mas como um adjuvante das terapias convencionais, como a quimioterapia e a radioterapia, e usa-se sobretudo em casos já sem outra solução. “Normalmente são doentes que já esgotaram as modalidades clássicas e que podem desenvolver muitos efeitos secundários aos tratamentos. A hipertermia permite -nos, com doses de radiação mais baixas, obter o mesmo resultado”, explica Paulo Costa, radioncologista do Instituto CUF Porto.

É o próprio calor que tem benefícios: “Ao aumentarmos a circulação sanguínea em determinado local, pela indução de calor, estamos a oxigenar o próprio tumor e tornamo-lo mais sensível”, explica o especialista. No limite, a temperatura também contribui para destruir as células tumorais, acrescenta.

A primeira paciente
Maria do Céu Gaspar foi a primeira doente oncológica a ser tratada com radioterapia e hipertermia: fez 20 sessões de radioterapia, diárias, e 10 de hipertermia, a cada dois dias. O tratamento de hipertermia não causa desconforto, pelo contrário, “parece que estamos à braseira ou ao irradiador”, compara a telefonista, que trabalha no Centro Hospitalar da Cova da Beira. Teve apenas de ficar deitada numa maca, durante uma hora, com uma máquina – um equipamento com dois eléctrodos, que eleva a temperatura do tumor – a pressionar o sítio da lesão. Ao mesmo tempo, continuava com a quimioterapia oral, um comprimido diário – os três tratamentos em conjunto funcionaram em pleno.

A terapêutica não é, para já, comparticipada e cada sessão custa 175 euros – sendo que cada tratamento inclui em média 10 sessões. Ao todo, Maria do Céu Gaspar terá gasto mais de 8 mil euros, mas não lamenta. “Se eu tenho um médico que me diz que vai correr bem, então vão-se os anéis e ficam os dedos.”

Junho de 2016 (o mês em que terminou o tratamento combinado com hipertermia) foi o culminar de dois anos particularmente difíceis: em Junho de 2014 começou a sentir a mama esquerda quente e vermelha, um mês depois veio o embate de saber que tinha um cancro raro; no início da quimioterapia decidiu rapar a cabeça – “não queria ter a sensação do cabelo a cair” – entretanto foram as unhas dos pés e das mãos que começaram a parecer-lhe diferentes, esbranquiçadas e a deitar pus; houve um período em que, apesar de ser uma excelente cozinheira, perdeu o apetite e tudo lhe sabia a ferro, até a água.
Durante a segunda fase de tratamentos – a radioterapia pré-operação, em Fevereiro de 2015 –, mudou-se temporariamente para uma residência em Coimbra, que hospeda doentes em tratamento longe de casa, e onde andar de pijama era proibido. “Diziam-nos que aquele sítio era considerado um hotel, não queriam que ficássemos ali fechados e cabisbaixos.”

No início de Agosto de 2016, Maria do Céu Gaspar voltou a ter a pele do peito rosada e a convicção de que vai “continuar a viver”, porque os tratamentos resultaram. Só não consegue deixar de olhar-se todos os dias ao espelho, é inevitável andar à procura de algo fora do normal, mas a preocupação já não é tão grande. “Tenho esperança de que o bicho ficou ali… esturricado.”

Texto originalmente publicado na edição n.º 662, de Janeiro de 2017, da SÁBADO

link: https://www.sabado.pt/ciencia—saude/detalhe/sabe-que-o-calor-pode-ser-arma-contra-o-cancro

Etiquetas: , ,